Não era para ser desse jeito. Esperava-se que a eleição de Maurício Macri para a presidência da Argentina fosse o fim de um dos mais conturbados episódios da história político-econômica dos nossos hermanos. Investidores ao redor do mundo viam com muito bons olhos as propostas do candidato sobre abrir a economia, tornando-se, assim, o queridinho de Wall Street. Aproveitando-se do legado de sua antecessora, uma economia extremamente frágil, Macri foi eleito através de promessas de soluções milagrosas e por oferecer uma nova perspectiva para os argentinos. O grande problema se encontrava na simplicidade com a qual o presidente enxergava a situação. Como bom político, defendia que seriam problemas simples de reverter, e que bastaria fazer “isso e depois aquilo” para resolver tudo. Apesar dessa postura, Macri estava diante de “uma tarefa tão simples quanto caminhar por uma corda bamba sobre as Cataratas do Iguaçu enquanto assa um bife”, como dito pelo The Economist. Mas por que essa era a realidade?
A herança de Kirchner
Ainda que os doze anos de kirchnerismo, os governos de Cristina e Néstor Kirchner, tenham resultado em melhorias consideráveis na qualidade de vida da população, o sonho argentino de bem estar econômico durou muito pouco. Por ter firmado sua popularidade em sucessivas melhorias sociais, os governos Kirchner adotaram políticas econômicas insustentáveis para forjar um cenário aparentemente ideal. Essa economia é chamada de “faz de conta”: finge que está tudo em ordem para se perpetuar politicamente.
Para entender quais eram essas medidas, basta pensar como um político que deseja ser reeleito de qualquer forma e que para isso se pergunta “quais ações devo tomar para que a população pense que estou fazendo tudo certo na economia?”. Se você teve a ideia de aparentar uma moeda estável com uma economia interna sólida, você pensou da mesma forma que Kirchner. Ao focar apenas na reeleição, o governo passou a queimar as reservas nacionais ao injetar dólares na economia para manter o peso apreciado perante ao dólar. Além disso, aumentou impostos de exportação, expandiu o setor público e baniu alguns produtos importados para fortalecer a indústria interna.
Essas medidas eram altamente destrutivas para a economia por consumirem as reservas de dólares e por desestimular a entrada de novos investidores. Dessa forma, gerou-se um déficit fiscal, quando os gastos do governo são maiores que sua receita, de 5% do PIB em um ano. Esse déficit, por falta de opção, foi pago por meio da impressão de papel moeda. Dessa forma, a oferta de pesos no mercado era maior do que antes, o que gerou aumento nos preços do mercado e, consequentemente, uma assustadora inflação de 40% ao ano.
Com a oposição denunciando todos esses equívocos econômicos, somado a um cenário de crise intensa no país, Cristina Kirchner não conseguiu bancar por muito mais tempo o seu projeto econômico de “Argentina, o país das maravilhas”. Então, com o fim do seu mandato, deixou a presidência de um país fadado a hiperinflação e a uma intensa desvalorização do peso em relação ao dólar.
Macri, presidente que deu fim a 12 anos de governos Kirchner, prometeu ter o remédio necessário para consertar o país que estava quebrado e prestes a entrar em uma firme recessão. No entanto, se você tem acompanhado as notícias, já sabe que algo deu errado. Mas o quê?
Remédio ou veneno?
O remédio apresentado por Macri se tratava de uma reestruturação gradual da economia. Isto é, o novo plano argentino era uma estratégia pautada em melhorias progressivas. Basicamente, existiam dois grandes passos: o primeiro, desmontar a estrutura intervencionista montada pelo governo Kirchner. Já o segundo era pautado em atrair fortes investimentos externos e limpar o nome da Argentina no mercado internacional. Esses passos deveriam ser dados de forma passiva, sem alterar drasticamente a economia e assustar os investidores. O problema é que fazer isso aos poucos demandaria tempo demais, motivo pelo qual o país nunca chegou a subir o segundo degrau.
As primeiras medidas de Macri agradaram bastante os investidores internacionais. A movimentação do governo para deixar o valor do peso fluir revelou uma postura não intervencionista, em contraste com os governos anteriores. Além disso, deu fim aos controles de exportação de capital existentes no país. Esses controles existiam porque uma forma que o governo Kirchner encontrou de manter o valor da moeda alto foi criar uma cotação limite de envio de dólares para o exterior para pessoas físicas. Isso significa que um cidadão não tinha liberdade para fazer transações em dólar acima de uma certa quantia, para fora do país. Com isso, a oferta de dólares se mantinha razoavelmente alta, o que acabava por evitar a desvalorização do peso.
E por mais que fosse difícil de acreditar que medidas tão simples pudessem surtir efeito, as provas disso eram visíveis. O início do governo Macri foi acima do esperado. Nos dois primeiros anos, o PIB estava crescendo 3% e o déficit fiscal estava sendo pago por pequenos aumentos graduais na arrecadação de impostos proveniente dos setores de energia e transporte. Entretanto, como o remédio criado por Macri era excessivamente lento, ele estava prestes a se tornar uma epidemia no país. Dinheiro não era o único recurso escasso para a Argentina, já que o tempo também era insuficiente.
Macri não dispunha de tempo porque a Argentina havia perdido o principal ativo que rege a economia mundial. Não, não estamos falando de dólares ou de euros. Tampouco de commodities ou máquinas. Falamos de um fator psicológico que direciona todas as ações dos principais investidores do mundo: a confiança. A história das sucessivas crises da Argentina faz com que qualquer investidor tivesse um pé atrás para injetar capital no país. A razão disso é a atual crise pela qual ele passa, somado aos 8 calotes internacionais em sua história. Com investidores pouco confiantes, adotar uma política que demora para trazer resultados talvez não tenha sido a melhor escolha do presidente.
Além disso, alguns fatores externos também foram preponderantes no que chamam de “Macrisis”. Em primeiro lugar, o cenário de incerteza gerado pela guerra comercial entre Estados Unidos e China ocasionou a desaceleração do comércio mundial e, portanto, a exportação de commodities, principal item da economia externa argentina. Outro ponto importante foi o aumento dos juros nos Estados Unidos. Isso foi extremamente prejudicial para o país devido a sua alta dívida em dólar. Por isso, com a elevação dessa taxa, suas dívidas cresceram níveis mais altos do que os esperado. Nesse clima de instabilidade, os juros na Argentina bateram o valor de 74% em agosto deste ano, o que reduziu fortemente o consumo no país. A forma com que esses juros aumentaram foi repentina e abrupta, o que reflete a situação de um país instável e que não é tão atrativo para se investir, além de revelar que as taxas devem prosseguir subindo no futuro.
Diante da postura econômica menos adequada frente aos fatos apresentados, o bom início do governo de Macri foi por água abaixo. As projeções não eram nada animadoras: o PIB se encontrava em forte queda, enquanto os juros e a inflação tendiam a aumentar. Caso isso tudo prosseguisse, o governo de Macri teria o mesmo fim que o de Cristina Kirchner, mas sem a manutenção do bem estar social. Provavelmente, a popularidade do governo iria a zero, e ele seria destituído do cargo. Como resolver o problema? Macri sempre tinha uma carta na manga.
O plano mirabolante
Como forma de tentar solucionar a questão, Macri optou por fazer a mesma coisa que os outros chefes políticos argentinos ao longo da história: abrir contato com o FMI e contrair um empréstimo.
Em 2018, alegando que seria necessário capital para reformular a política econômica do país para restaurar a confiança dos investidores, Macri foi capaz de convencer o FMI a conceder cerca de 50 bilhões de dólares, o maior resgate financeiro da história do fundo internacional.
Novamente, o presidente argentino apostou alto em uma possível remediação do problema, e infelizmente já sabemos como isso acabou. Macri acreditava ter a cura, mas ela seria, mais uma vez, pior que a doença. Do total do empréstimo recebido, 16 bilhões foram jogados fora em tentativas completamente falhas de impedir a desvalorização do peso. Isso apenas intensificou um problema que a Argentina já tinha: a dívida externa. Como consequência, tivemos uma recessão pairando nos céus argentinos, a desvalorização do peso, a instabilidade financeira e a escalada da dívida externa do país.
Perceba que o governo de Macri se tornou tudo aquilo que ele mais abominava. Foi eleito lutando contra a crise econômica do país e agora suas decisões mal planejadas levaram a Argentina para uma situação econômica pior do que a anterior, e ainda com a elevação de 35% da dívida pública.
Além de todos os problemas citados, a deterioração das reservas em dólar do país é mais um fator preocupante. Ter uma boa quantidade de reserva em dólar é uma ferramenta vital na política monetária para evitar a oscilação da moeda a longo prazo. A partir do momento em que a Argentina se encontra em um ambiente econômico altamente volátil em relação ao dólar, devido ao clima de incerteza interno do país, ocorre a evasão da moeda americana. Pessoas que investiram seu dinheiro na Argentina irão retirá-lo de lá por ser muito mais arriscado mantê-lo no país. Assim, uma ferramenta popular do governo é injetar dólares na economia para mascarar desvalorização do peso, o que acaba comprometendo a manutenção a longo prazo já que o governo está queimando essas reservas nacionais.
O futuro incerto: as reações contra a “Macrisis”
A primeira medida exigida pelo FMI ao conceder o empréstimo foi a austeridade econômica, ou seja, uma postura a fim a enxugar ao máximo os custos do país, cortando gastos desnecessários aos olhos do fundo. Esse fato implicou o fim dos programas sociais instituídos nos governos Kirchner, que visavam uma melhor distribuição de renda no país. É claro que isso ressoou na população argentina, sobretudo na mais pobre. As reações contra o atual presidente e o FMI foram imediatas. Ninguém deseja perder benefícios adquiridos por causa de um empréstimo. Muitas pessoas ainda se recordavam dos péssimos tempos vividos na profunda depressão de 1998-2002 por causa de um empréstimo desse mesmo fundo, e não queriam passar por isso de novo. Uma crise de fome se instaurou no país com o fim dos programas sociais e a inflação dos preços, e os protestos ganharam cada vez mais volume.
As preocupações de Macri não se encontram somente nos protestos, mas também nas urnas. Nas eleições primárias desse ano, Macri perdeu por espantosos 15% (3.7 milhões) dos votos para a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. As pessoas se recordam dos bons tempos de bem estar social que viviam com a ex-presidente Kirchner e, diante de um cenário de crise econômica, desejam voltar ao que era antes. Além disso, Fernández desafia o fundo ao dizer que não pagará nada. Esse revanchismo agrada a população que deseja se livrar desse temido fantasma, mas é algo extremamente ruim para a imagem da Argentina no mercado mundial.
É importante lembrar que a chapa que está prestes a ganhar as eleições presidenciais é completamente oposta ao governo brasileiro, que é a principal economia do Mercosul. Esse fator político pode acarretar uma crise econômica entre os dois países ou, até pior, uma crise econômica do bloco. As políticas propostas pelo candidato Fernández estão todas voltadas para fechar a economia, o que pode afetar diretamente o acordo do Mercosul com a União Europeia.
Para fechar todo esse contexto com chave de ouro, a Argentina emitiu um comunicado, em 28 de agosto desse ano, que se encontra incapaz de pagar suas dívidas, declarando então a moratória. Com outras palavras, pediu para renegociar a dívida com o FMI e para atrasar o pagamento. Todo esse cenário apenas confirma aquilo que os investidores já imaginavam: deve-se sempre ter um pé atrás quando se for investir dinheiro na Argentina.
O que mais preocupa aqui é que Macri não tem só uma dívida com o FMI. Ele tem uma dívida com o povo argentino. Os problemas econômicos decorrentes de decisões mal pensadas atingiram fortemente a esperança da nação, que via nele a pessoa certa para finalmente alcançar a sonhada estabilidade econômica que o país pouco teve em sua história. Entretanto, essa expectativa não se tornou realidade. Muito pelo contrário, aconteceu aquilo que a população mais temia: um novo cenário de recessão econômica menos de 20 anos após a Grande Depressão Argentina. Pior do que não ter sido a cura para os problemas econômicos argentinos, é ter sido a nova doença para a economia dos nossos hermanos. O que resta agora é aguardar os resultados das próximas eleições presidenciais e como Macri tentará reverter toda essa situação de forte desesperança do povo argentino. Cenas dos próximos capítulos.
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