Já não é surpresa para ninguém que a China mudou o cenário tecnológico nos últimos anos. O país, antes visto como a grande fábrica do ocidente, hoje investe mais de 200 bilhões de dólares em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e dispõe de uma vasta gama de empresas de sucesso mundial, especialmente quando se fala de tecnologia. Dessa forma, a pergunta que fica é: como um país conhecido pela pirataria e pela baixa qualidade dos produtos emergiu como uma potência em inovação e desenvolvimento tecnológico?
A Virada de Mesa
Educação
Pode parecer clichê, mas a primeira grande razão para a mudança chinesa reside na educação. Nos últimos anos, o governo vem aumentando os investimentos nesse setor e, hoje, direciona a essa área cerca de 4% do PIB, além de impor leis acerca da obrigatoriedade de estudo, a fim de manter sua população nas escolas.
Somado a isso, o país é um dos que mais envia estudantes para o exterior. Contudo, o mais importante disso não é quantidade em si, mas sim a taxa de retorno desses jovens ao mercado de trabalho chinês. Se, em 2006, menos de um terço dos chineses que saíram da China a procura de oportunidades de estudo e pesquisa optaram por retornar ao país após concluírem suas atividades. Hoje, a conversão chega a cerca de 80% graças aos incentivos do Estado por meio de salários mais generosos e auxílios moradia e saúde. Nessa perspectiva, ao regressarem, estão munidos de experiências e habilidades necessárias para auxiliar no desenvolvimento tecnológico da indústria local.
Além disso, o governo chinês passou a incentivar a aproximação entre os mundos corporativo e acadêmico por meio do empreendedorismo. Para isso, além de incentivos fiscais, foram criados parques tecnológicos voltados para startups, abrindo espaço para o surgimento de um equivalente ao Vale do Silício no país. O resultado dessas ações é evidente à medida que, dentre os alunos da Universidade de Pequim, o percentual daqueles que abriram ou trabalharam numa startup subiu de 4% para 14% em menos de 10 anos.
Mercado
Uma característica fundamental que leva ao cenário atual é o tamanho da população chinesa. Com cerca de 1,4 bilhão de habitantes, o mercado interno chinês é atrativo para qualquer empresa que deseja inovar, não só pela abundância de mão de obra qualificada, como também pelo número de possíveis consumidores. Para efeito de comparação, se uma empresa dispõe de 20% do mercado de smartphones chinês, por exemplo, seus clientes já somam o equivalente a toda população brasileira.
A atratividade dos mercados chineses, portanto, deriva do possível ganho de escala, de maneira que, quanto maior for o Market Size, maior é a expectativa de ganho da empresa. Por sua vez, esse grande volume de receita é capaz de cobrir os altos custos atrelados à inovação, sejam em P&D ou compra de tecnologias estrangeiras.
É essencial, ainda, destacar a grande classe média chinesa, que está numa crescente e hoje já soma mais de 400 milhões de pessoas. Com o aumento do poder aquisitivo dessas famílias, o consumo de bens de maior valor agregado cresce, aumentando a oferta de produtos do ramo tecnológico e, consequentemente, o interesse dos investidores no setor.
Receptividade do consumidor
Outro ponto decisivo para a rápida expansão de empresas do setor tecnológico do país se dá pela difusão da internet no cotidiano da população. De 2008 até hoje, o número de chineses conectados à rede quase triplicou, chegando a mais de 800 milhões. Aliado a isso, a população se mostra muito entusiasmada quanto às novidades capazes de tornarem seu cotidiano mais prático. Portanto, se adapta rapidamente às mudanças que grandes empresas como o grupo Alibaba propõem. A organização desenvolveu o AliPay: uma plataforma virtual de pagamentos que abrange os mais diversos serviços que o cidadão comum utiliza, possibilitando-o fazer desde compras no supermercado via QR Code até tomar empréstimos com segurança e praticidade. O sucesso do Alipay é tão significativo que, hoje, mais de 700 milhões de chineses utilizam seus serviços.
Como grande exemplo dessa maleabilidade dos consumidores, a explosão do e-commerce no país nos últimos anos recebe papel de destaque. Em cerca de uma década, a participação da China (em receita) no e-commerce mundial passou de 1% para 50%, destronando os EUA, que lideravam a estatística até então. Diante disso, é esperado que o país, sozinho, movimente em torno de 1 Trilhão de dólares em 2021 somente em vendas online.
Resultado
Logo, todos esses fatores somados estimularam o surgimento de novos modelos de negócios, bem como criaram espaço para empresas já consolidadas aumentarem seu escopo de atuação. Toda essa euforia de crescimento pode ser reparada, por exemplo, no aumento dos investimentos dos fundos de Venture Capital no país. Espera-se que em 2020 e 2021, a China supere os EUA no montante total investido por esses fundos.
Além disso, a expansão tecnológica chinesa torna-se mais clara, sobretudo, com a aparição de novas gigantes nos mercados voltados para a tecnologia, como é o caso da Huawei, Xiaomi, Alibaba e Baidu. Cabe agora, portanto, entender um pouco mais sobre algumas delas, como ganharam tanta escala em tão pouco tempo e o que podemos esperar delas no futuro.
HUAWEI
Apenas uma pequena empresa de manufatura de componentes telefônicos na década de 1980, a Huawei se expandiu e, hoje, é a maior empresa de telecomunicações do mundo, atuando em mais de 170 países. Sua proeza, se deu principalmente pelo enorme mercado consumidor local em adição aos baixos custos atrelados à produção. Além disso, outro ponto decisivo para seu ganho de escala e que possibilitou a expansão para outras áreas foi o protecionismo do governo, responsável por tornar seus produtos ainda mais atrativos em comparação aos ocidentais.
Por outro lado, nem tudo tem dado certo para a empresa. Na atual guerra tarifária entre os EUA e China, as operações e ambições da Huawei vem sendo bastante prejudicadas. Recentemente, o governo Trump divulgou, além de novas taxações, listas negras contendo diversas empresas e institutos de pesquisa chineses, com os quais empresas estadunidenses estariam proibidas de negociarem sem autorização prévia do governo. A Huawei é um dos grandes nomes nessa lista e, portanto, a medida prejudicou sua inserção e expansão em outros mercados fora da China.
Com isso, o movimento dos Estados Unidos fica claro: estimular que as empresas norte-americanas movam suas cadeias de suprimento para fora da China, bem como tentar reduzir a influência chinesa no novo “boom” tecnológico que está por vir com o 5G. A Huawei é uma das grandes responsáveis pelo seu desenvolvimento dessa tecnologia, sendo a empresa com maior número de patentes registradas referentes a esse avanço, possuindo mais de 1500. A Casa Branca alega que a empresa tem sua inteligência alinhada com o governo chinês e que, portanto, a China se aproveitaria do grande volume de dados coletados pelas Huawei para espionagem de outros países. Tanto a empresa quanto o país negam tais suposições.
Com essas medidas adotadas por Trump, espera-se uma queda em torno de 40% nas vendas de telefones da companhia para o exterior. A Huawei, que hoje compete com a Samsung pelo domínio do mercado mundial de smartphones, volta seus olhos para o mercado interno, visando mitigar os impactos desse declínio. Com isso, a empresa, que hoje dispõe de quase 35% desse mercado na China, pretende expandir seu domínio interno, mirando conquistar 50% dos consumidores de smartphones do país.
Como pode-se perceber, a Huawei ainda tem um certo caminho a percorrer para atingir sua meta. Entretanto, no meio dessa jornada, existem concorrentes tão eficientes e capazes quanto ela, podendo tomar seu posto de líder de mercado rapidamente. Um desses principais obstáculos é a Xiaomi.
XIAOMI
Fundada em 2010, a Xiaomi é uma das maiores empresas no ramo de smartphones no mundo, apesar de não se limitar somente a esse tipo de produto. Seu crescimento exponencial em tão pouco tempo, é apoiado sobre bases um pouco diferentes da Huawei. Isso se deu muito devido ao fato de seu fundador, Jun Lei, com uma vasta experiência como investidor anjo, ter enxergado possíveis gatilhos para escalar a empresa.
O primeiro e grande aspecto trabalhado pela empresa era bem simples: abandonar a ideia de lojas físicas. Os altos custos associados à manutenção de uma loja brick and mortar não interessavam à empresa que tinha como principal objetivo vender seus produtos a um baixíssimo preço. Dessa forma, a Xiaomi abriu as portas para o mundo somente no ambiente virtual, auxiliando o crescimento do e-commerce chinês frente a outras potências.
Contudo, a empresa não enxergou somente esse caminho para sua ascensão. Outra grande jogada de Jun Lei consistiu em, durante os primeiros anos, realizar vendas relâmpago periódicas, a fim de aumentar o engajamento e expectativa dos clientes sobre eles. Dessa forma, a empresa deixaria de gastar boa parte de seus recursos com estoques excessivos.
Essa mentalidade implementada trouxe consequências essenciais para seu crescimento. A primeira delas foi a geração da possibilidade de vender seus produtos quase a preço de custo. Já a outra se relaciona mais ao valor que os clientes passaram a enxergar na marca. Assim, a Xiaomi desenvolveu ao longo do tempo, uma base de fãs de seus produtos, fazendo com que seu marketing pouco explorado fosse potencializado de maneira orgânica por seus fiéis clientes.
Contudo, depois de um certo tempo, as coisas deixaram de fluir tão bem. Somente o marketing boca a boca feito pelos clientes e as vendas online não eram capazes de aumentar sua base de consumidores. Foi então que, depois de seu ganho de escala nos anos iniciais, ela passou não só a abrir lojas físicas, como também expandir seu portfólio, criando uma linha de produtos complementares aos telefones, como smartwatches e fones de ouvido. Essa nova produção de acessórios, aliada à base de fãs da marca, faz a imagem da Xiaomi se assemelhar à da Apple, dadas as devidas proporções.
Sob um outro aspecto, é interessante reparar que, embora a empresa tenha começado muito forte na China e se estabelecido entre as maiores no mercado de smartphones, os bons resultados da Xiaomi se destacam, sobretudo, em países emergentes. O maior exemplo disso é a Índia, onde a empresa passou a vender seus produtos em parceira com o Flipkart, um dos principais sites de e-commerce do país. Em 2017, bateu recorde anual de vendas no mercado indiano de smartphones, faturando mais de 1 Bilhão de dólares e destronando a Samsung, líder de mercado até então.
Recentemente, ela abriu mais uma loja em mais um desses países: o Brasil. A loja, inaugurada em São Paulo, pode ser a porta de entrada para a expansão da Xiaomi no Brasil e na América Latina num futuro bem próximo.
Mas… e agora?
A partir de agora, não há como saber ao certo o que pode acontecer com o gigante asiático. A cada dia, mais um capítulo surge na Guerra Comercial, fazendo com que as economias nacionais sejam mais prejudicadas. Na última semana, Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano, visitou a Índia com o intuito de negociar a importação de componentes eletrônicos, que substituiriam os produtos chineses. Essa medida pode ser vista como um indicador da continuidade da disputa tarifária, bem como reforça seus impactos negativos sobre a China.
Contudo, embora os chineses já enxerguem uma desaceleração do crescimento, sua relevância no mundo tech já é tamanha que será muito difícil para os EUA retirá-los do jogo. A nova China, ainda que dependa dos estadunidenses em certos setores, é implacável. É repleta de inovação, capital e, principalmente, vontade de crescer. E é, ao que tudo indica, um dos polos da grande revolução tecnológica que virá nos próximos anos com o 5G.
Talvez você nunca tenha imaginado que o “made in” se tornaria “designed in China”, mas a realidade agora bate à sua porta, seja sob forma de Alibaba, Xiaomi, Huawei ou outras milhares de startups chinesas. O que vem daqui pra frente nessa nova era da tecnologia somente o tempo poderá dizer, mas uma coisa é certa: a China estará no centro de tudo isso.
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