Incerteza. Essa tem sido a definição do cenário no Reino Unido nos últimos meses. Após diversas rejeições às propostas de saída do bloco, a possibilidade de não haver acordo amedronta o Parlamento Europeu, o Estado britânico e toda a sua população, levando a um cenário de instabilidade econômica e crises políticas. A evasão de grandes corporações, o estoque de matéria-prima nas indústrias e a perda de confiança dos investidores. Essas são algumas das consequências provenientes das dúvidas a respeito do “Brexit”, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia. Mas, afinal como a situação em uma das maiores nações da Europa e do mundo chegou a esse ponto? Para entendermos melhor o contexto atual, devemos olhar para as raízes do processo.
O referendo
23 de junho de 2016. Foi nesse dia que o referendo feito para decidir se o “Brexit” seria homologado ou não chegou a um resultado. Com eleitores de todos os países do Reino Unido, a população optou, com 51.9% dos votos, por deixar o maior bloco econômico do mundo.
Apesar das pesquisas de intenções de voto, a notícia de que um dos principais membros deixaria a União foi uma surpresa para a comunidade internacional. Os mercados europeus fecharam com resultados chocantes: a bolsa espanhola presenciou sua maior desvalorização diária na história, que chegou a mais de 12%, enquanto que o maior país do bloco, a Alemanha, obteve -6,82% no Índice DAX. Já em Londres, a bolsa fechou com uma redução de 3,15%, enquanto que a Libra Esterlina teve sua maior queda em mais de 30 anos, chegando a uma baixa de 11% em relação ao dólar, o que fez os investidores questionarem o futuro da cidade como uma das capitais financeiras do mundo. As variações foram um demonstrativo da sensibilidade do assunto e do impacto econômico internacional.
* Cotação da Libra em relação ao dólar no dia do referendo
As faces do Brexit
Passado o plebiscito, foram publicadas pesquisas sobre os perfis dos eleitores, sinalizando a questão da segmentação dos votos dentre diferentes grupos populacionais. Os dados mostraram uma padronização interessante na divisão demográfica dos votos, por exemplo, em regiões com maior porcentagem de habitantes com alta escolaridade, com a maioria votando pela permanência no bloco e locais com menor percentual de habitantes desse segmento, votando pela saída. A dualidade se repete entre: mais ricos e mais pobres, mais jovens e mais velhos, urbano e rural. Também é interessante como, nas regiões com menor percentual de imigrantes, a maioria preferiu a separação da União.
O Reino Unido sempre se mostrou como um dos membros com maior resistência ao controle europeu, sendo um povo com amor à sua cultura e história. Isso se dá devido ao grande nacionalismo britânico que se permeia tanto pelo patriotismo, quanto pelo conservadorismo, retratados, principalmente, na manutenção da Libra como moeda oficial. O cidadão britânico preza pelos acordos comerciais livres de tarifas que o bloco proporciona, mas ao mesmo tempo ele preza, acima de tudo, pela autonomia de seu Estado e pela manutenção de sua identidade histórico-cultural.
Dado o contexto, a ascensão em escala global de uma onda conservadora nos últimos anos culminou com o fortalecimento de tendências nacionalistas que, por sua vez, conflitaram com algumas vantagens e desvantagens provenientes da participação na União Europeia. O recente boom da imigração na Europa, a crise que atingiu seus parceiros comerciais da Zona do Euro e a falta de autonomia que a participação na União Europeia causa foram alguns dos fatores que agravaram o principal medo dos britânicos: a perda de sua soberania. Ao se manter membro do Mercado Comum Europeu e se ver livre de taxações, o Reino Unido também se viu restrito quanto ao controle migratório em seu território, principalmente a partir da crise dos refugiados em 2016, o que serviu como um dos gatilhos para a potencialização do conservadorismo previamente citado.
Apesar de a crise da Zona do Euro não ter afetado o Reino Unido diretamente, as marcas deixadas nos europeus foram suficientes para enfraquecer o bloco econômico. O caso mais ilustrativo desse episódio é a crise soberana vivenciada pela Grécia, na qual o país contraiu uma dívida que chegou a 160% do seu PIB, em 2012. A situação miserável do Estado grego alarmou o mundo quanto à fraqueza da Zona do Euro, cujos membros também eram da União Europeia. Por sinal, o conceito de “país + exit” surge com o movimento feito na época para promover a separação entre a Grécia e o bloco econômico, no chamado “Grexit”. Não só isso, o aumento da taxa de desemprego, aliado aos motivos citados, fortaleceram o pensamento de controle sobre as fronteiras nacionais, alimentando o medo dos mais conservadores de que as instituições inglesas estavam perdendo seu poder e influência. A fonte do problema se origina no momento em que entram, de forma livre, pessoas mais pobres em busca de oportunidades e pessoas com pouca qualificação, que agravam o desemprego e a estrutura deficitária do país, sejam elas vindas de fora da Europa ou até de dentro. Esse temor fomentou o Reino Unido a anunciar, em 2018, que priorizaria a entrada de imigrantes qualificados através de um sistema de triagem. Diante do anúncio, a primeira-ministra britânica afirmou que "o sistema seria baseado na capacidade dos trabalhadores, e não em sua origem.”
O que está em jogo saindo da UE
A participação na União Europeia garante aos países membros participação no Mercado Comum Europeu, permitindo a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital entre os integrantes do bloco. Isso proporciona acordos comerciais e estreitamento de laços diplomáticos, aumentando a integração entre os países. Ao sair dessa integração, o Reino Unido abre mão da participação integral no Mercado, o que significa abrir mão de um mercado consumidor de 500 milhões de pessoas no qual a circulação dos produtos entre os membros é livre de barreiras fiscais. Estima-se também que a economia britânica registrará uma perda de £75 bilhões proveniente do rompimento desses tratados comerciais, embora economizem £9 bilhões anualmente com os gastos voltados para a UE que poderiam ser reinvestidos em seu próprio crescimento.
Por um lado, não é certo que o Reino Unido irá perder esse mercado, entretanto, a taxação sobre os produtos exportados é o que irá gerar maior impacto sobre a economia britânica nos acordos com países da EU, uma vez que os produtores ou aumentarão os preços, a fim de manter a margem de lucro, ou perderão lucratividade. A Jaguar Land Rover, empresa britânica do setor automobilístico, paralisou as atividades em suas principais fábricas do Reino Unido durante uma semana devido ao potencial efeito do Brexit em sua cadeia de suprimentos e devido a redução nas vendas, que não apresentam perspectiva otimista dado o cenário atual. A holding também iniciou um corte de 11% no número de funcionários em suas indústrias, sendo as principais afetadas as unidades britânicas, nas quais a perda de competitividade se potencializa sob a possibilidade do aumento dos preços dos produtos exportados. Os efeitos negativos do cenário de especulação atual já está causando a fuga de empresas e diminuindo a atratividade aos investidores, sendo esperada uma redução de 22% no IED, com a realização do Brexit. A possível perda da força econômica britânica na Europa ganha mais força ainda com a expectativa de queda de seu PIB entre 1,5% e 3,9% até 2030, ao passo de que as exportações sofreriam uma redução de 8,8%, segundo a Oxford Economics.
Se de certa forma o Reino Unido procura restringir o acesso de imigrantes em seu território, consequentemente também será dificultada a entrada de seus habitantes nos demais países europeus, seja para fins acadêmicos, profissionais ou turísticos. Paralelo a isso, a situação para os 1,3 milhões de cidadãos britânicos que vivem em países da União Europeia é ainda mais incerta: caso o processo de saída seja feito de forma gradual, eles terão liberdade de ir e vir até o final do período transicional do Brexit, em 2020. Entretanto, caso ambas as partes não cheguem a um acordo e o Reino Unido corte relações imediatamente com a União Europeia, há uma enorme especulação quanto às consequências que isso vai gerar a essas pessoas.
Frente a esse temor, a Comissão Europeia se manifestou dizendo para os Estados europeus “terem uma abordagem generosa para com os direitos dos cidadãos do Reino Unido, enquanto que essa abordagem seja recíproca”.
Como se já não bastasse a pressão econômica e social, a questão da fronteira entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (país independente e membro da UE) também inseriu grande pressão política no cenário, justamente pelo risco de retorno de antigos conflitos que, durante três décadas, geraram guerras político-religiosas sangrentas entre as nações. Desde o acordo de paz de 1998, não existem barreiras físicas entre os dois países, ao mesmo tempo em que ambos os lados pertencem à União Europeia, o que configura uma participação mútua no mercado comum. O problema reside nas consequências do Brexit: caso o Reino Unido se separe, a circulação em seu território será restringida e a fronteira entre as Irlandas será a única fronteira física entre o Reino Unido e a União Europeia. Diante dessa possibilidade, tanto o Parlamento quanto Theresa May temem o surgimento de novas tensões e disputas entre as nações, que foram os precursores para guerras no passado.
Os impactos não param por aí, nem mesmo o campeonato de futebol mais rico do mundo, a Premier League, conseguiu escapar da repercussão gerada pelo duvidoso Brexit dentro do Reino Unido. Tendo visto na separação uma oportunidade para aumentar a participação dos jogadores ingleses na liga, a instituição de futebol do país cogitou limitar mais ainda o número de jogadores dos clubes que não vieram das categorias de base, que em sua maioria são estrangeiros. Aliado a isso, o possível aumento de burocracia causado pela saída do bloco com vistos e permissões resultaria na rescisão de contratos e transferência de grande parte dos jogadores internacionais, impactando na perda de competitividade das equipes e, consequentemente, de atratividade do campeonato. A longo prazo, a Premier League obteria menos patrocínios, menor receita com direitos televisivos e perderia parte de sua influência mundial como o maior campeonato de futebol do mundo.
E agora?
Passados dois anos do referendo, ambas as partes chegaram a um consenso quanto ao acordo de saída do Reino Unido. Entretanto, a fim de que o processo de fato acontecesse, ele deveria primeiro ser aprovado pelo Parlamento britânico, também conhecido como a Casa dos Comuns. Após diversas propostas rejeitadas pelos parlamentares, a ameaça do “No Deal” ocorrer, ou seja, de não haver acordo, gerou uma expectativa de perda de 4,5 bilhões de libras na economia britânica, assustando as bolsas mundiais. Pressionada por uma aprovação, a primeira-ministra afirmou que, caso seu acordo fosse aprovado e o Brexit tivesse continuação, ela renunciaria ao cargo. Com isso, May não só perdeu influência com seus opositores, mas com seus aliados também.
Dessa forma, com 80% de reprovação e dada a fragilidade de seu mandato, é provável que Theresa May não acompanhe o fim dessa história como primeira-ministra, a não ser que retome suas alianças e consiga recuperar a estabilidade econômica da nação.
Enquanto esse cenário caótico se mantém, fábricas estão estocando matéria-prima para manter suas operações, grandes multinacionais encerrando suas atividades no Reino Unido e a população revoltada com a situação a que chegaram: de um lado, os pró-Brexit desejando que algo seja feito imediatamente para acabar com o cenário de especulação e instabilidade econômica; Do outro, os opositores protestando para que o processo seja prolongado ou até que seja feito um novo referendo. De um jeito ou de outro, o futuro do Brexit continua incerto.
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