Diferentemente de alguns países, no Brasil, cabe ao empreendedor calcular os tributos, além de interpretar a legislação por conta própria. Para piorar a situação, ele também não conta com uma orientação clara sobre a prática contábil e acaba tendo que calcular e pagar o imposto assumindo o risco de erro de interpretação ou financiar um alto preço para que alguém especializado faça isso por ele. Dessa maneira, a atividade do empreendedor brasileiro enfrenta dois sérios obstáculos: a carga tributária elevada e as obrigações acessórias complexas e custosas.
Desde 2014, o empresariado possui mais um entrave que dificulta sua expansão: a crise presente no Brasil. Com isso, muitas possíveis soluções são levantadas para debate e, assim, no dia 23 de junho de 2021, o ministro da Economia, Paulo Guedes, entregou um texto ao Congresso com as mudanças sugeridas pelo governo para a Reforma Tributária. Dentre as medidas presentes no documento, é possível destacar a diminuição do número de tributos cobrados atualmente, a ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda, além de outras mudanças em tributações. Frente a essa possibilidade de grandes alterações no cenário econômico nacional, é necessário se questionar sobre como a reforma vai, de fato, afetar a vida dos milhões de brasileiros que sofrem com a contabilidade de seus negócios.
Tribulações no sistema
Uma Reforma Tributária é uma proposta de reformulação dos impostos e de sua forma de cobrança, porém, mais especificamente para o caso do Brasil, ela busca simplificar a arrecadação de taxas e impostos. Nesse sentido, o modelo tributário ideal é aquele que preserva o equilíbrio na concorrência e favorece o desenvolvimento das competências tanto econômicas quanto sociais do país. Logo, a eficiência da reforma é fundamental para estimular o ritmo de crescimento econômico nacional, gerando, consequentemente, emprego e renda para a sua população.
Seguindo essa lógica, a demanda da sociedade brasileira por uma reestruturação tributária existe há, pelo menos, três décadas. Em 1995, ano em que o termo Custo Brasil¹ foi debatido pela primeira vez em um seminário da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o confuso sistema de cálculo e de cobrança de impostos já era considerado o grande vilão para a economia do país. Desde então, além de a carga taxada ter subido de 27% em 1995 para 33% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021, o sistema de cobrança de impostos tornou-se ainda mais complexo com o estabelecimento de novas regras para diferentes impostos.
De forma geral, o modelo de taxação em vigor dificulta o crescimento econômico e social do país, pois eleva os custos das empresas e penaliza os investimentos. Isso ocorre porque os tributos cumulativos incidentes sobre bens e serviços fazem com que investir no Brasil seja mais caro do que em outros países. Para fins comparativos, um estudo da CNI revelou que o custo de instalação de uma siderúrgica no Brasil tem um acréscimo de 10,6% devido aos impactos diretos e indiretos dos tributos sobre bens e serviços, sendo que, em outras nações, tais como Austrália e México, esse custo é bem menor. Além disso, o modelo de impostos brasileiro impõe uma clara desvantagem aos produtos nacionais diante dos importados, tanto na competição no mercado externo quanto na própria sobrevivência no âmbito interno.
Na disputa comercial, as empresas estrangeiras muitas vezes têm dificuldade de entrar no mercado brasileiro, pois o que elas conhecem de tributação da maior parte dos países não é aplicável aqui, exigindo um grande esforço de adaptação muitas vezes não recompensável. Segundo um estudo do Banco Mundial, as empresas brasileiras gastam entre 1483 e 1501 horas por ano para preparar, declarar e pagar impostos, sendo a maior quantia registrada no mundo. Dentre outras, essa adversidade acaba fazendo com que poucas companhias optem por operar no território nacional, já que é possível encontrar diversas nações ao redor do mundo com condições mais favoráveis que as do Brasil. O setor industrial, por efeito, torna-se o principal prejudicado, uma vez que, além de enfrentar a concorrência externa em desvantagem, está sujeito a maior carga tributária dentre os setores.
Ademais, no Brasil, incidem sobre empresas de bens e serviços diversos impostos, como o ICMS², ISS³, PIS4⁴ e Cofins⁵, enquanto na maior parte dos outros países, há somente o Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA)⁶. No mais, cada um dos 26 estados tem seu próprio ICMS, e cada um dos 5570 municípios têm regras particulares de ISS, aumentando a burocracia e dificultando ainda mais o entendimento tributário tanto por parte das empresas estrangeiras quanto pela população brasileira. Por isso, em um sistema mais simples e menos burocrático, há a redução expressiva dos custos para investimentos, incentivando, assim, a economia e a indústria. Em adição, para as empresas produzirem mais nesse tipo de sistema, promove-se o aumento da qualidade e a redução dos preços dos produtos e serviços disponíveis ao cidadão, além da maior geração de renda e empregos no país.
Descomplicando o sistema
A principal mudança prevista pela primeira fase da Reforma Tributária é o rearranjo dos impostos pagos atualmente por meio da simplificação. Isso se daria pela unificação do PIS e do Cofins, em um tributo de valor agregado: o CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Essa PEC⁷ também busca substituir o PIS sobre a folha salarial, importações e receitas e o Cofins sobre importações e receitas por um único imposto, sendo limitada aos tributos federais sobre o consumo, já que os impostos municipais e estaduais sobre consumo e serviços (ISS e ICMS) não estão incluídos. Com isso, o governo espera acabar com as cobranças diferenciadas para vários setores, possibilitando um ambiente de negócios mais favorável e eficiente para a economia brasileira, além de facilitar a tributação de bens e serviços para as empresas. Porém, apesar da óbvia simplificação das cobranças, essa proposta não faria tanta diferença nos aspectos contábeis das empresas nacionais, já que, na prática, não haveria propriamente a redução da carga tributária e o ônus decorrente do CBS provavelmente seria equivalente ao dos tributos extintos. Logo, a principal redução seria atrelada aos custos necessários para a compreensão dos impostos, configurando, de certa forma, um impacto financeiro positivo.
Fora essa PEC, outras propostas debatidas dizem respeito à cobrança do Imposto de Renda (IR), principalmente no que concerne ao aumento da faixa de isenção atual de R$ 1903,98 para R$ 2500,00 por mês e da abolição do desconto de 20% para os cidadãos que fazem a declaração simplificada⁸. Caso a reforma seja aprovada pelo Congresso, um trabalhador com salário bruto de R$ 4500,00, por exemplo, ficará sem a restituição⁹. Na prática, ele vai pagar R$ 1057,00 a mais de Imposto de Renda do que paga hoje, já que não haverá mais 20% de desconto incidindo no valor total do cálculo do seu Imposto de Renda. Enquanto isso, em compensação, um empregado com salário bruto de R$ 3500,00 pagará R$ 267,00 a menos. Logo, a cobrança para o contribuinte aumenta quanto maior é a renda, o que pode gerar certo prejuízo ao comparar os cenários pré e pós reforma.
Nesse panorama, de forma contraditória, o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda não beneficia apenas quem é isento, mas mostra-se como um benefício em escala, porque o trabalhador só paga imposto sobre o valor que ultrapassa esse limite determinado.
Além disso, a Reforma também visa reduzir a tributação sobre as empresas e instituir cobrança sobre dividendos, ou seja, taxar a parcela do lucro distribuída aos acionistas, criando mecanismos para desestimular a tendência de pejotização, que trata-se de uma prática ilegal no qual o empregador contrata um empregado revestido de pessoa jurídica, com o objetivo de evitar os encargos decorrentes da relação empregatícia, potencializando os lucros da companhia. Pela lei atual, o acionista não sofre tributação ao receber dividendos da empresa, regra que vale desde 1996, quando o governo concluiu que as empresas já pagavam impostos sobre a atividade e que cobrar IR sobre dividendos resultaria em bitributação. Esse entendimento parte do princípio de que os dividendos são retirados do lucro líquido, isto é, após os descontos de impostos e outras contribuições. Dessa maneira, a proposta diz que os dividendos serão tributados em 20% na fonte, além disso, haverá uma isenção de R$20 mil por mês para microempresas e empresas de pequeno porte.
Todavia, a distribuição de dividendos é um dos principais atrativos para investidores adeptos do buy and hold, ou seja, do investimento em ações com foco no longo prazo. Dessa forma, com a possibilidade de tributação desses dividendos para esses sócios, há o temor de que algumas das principais ações da bolsa de valores percam competitividade de compra, já que, com os tributos, a porcentagem de renda delas diminuiria e, consequentemente, seu valor também diminuiria. Essa desvantagem para os acionistas pode ser extremamente prejudicial para a economia brasileira, já que, no âmbito atual, há necessidade de uma maior circulação de dinheiro e de um aumento de investimentos no país.
Por fim, também é possível que a reforma acabe com os Juros Sobre Capital Próprio (JCP), uma outra forma de divisão de lucros da empresa, que podem ser declarados como gastos, já que essa distribuição é realizada anteriormente ao fechamento do lucro líquido, entrando como um desconto do exercício da empresa. Em contraste aos dividendos, os JCPs são descontados da receita total da empresa, ou seja, antes da dedução das contribuições e impostos. Por esse motivo, a distribuição dos JCPs exige o pagamento de 15% de Imposto de Renda. No entanto, esta prática é vantajosa para as empresas, porque reduz o montante que elas declaram como lucro, que sofre tributação de 34% se considerados os 25% do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e os 9% da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Com o fim dos JCPs, as empresas não poderiam mais recorrer a esse mecanismo para aliviar a carga tributária, o que se configuraria como mais uma desvantagem nacional para empresas que têm interesse em se alocar no Brasil.
Conclusão
De modo geral, a maior vantagem da Reforma Tributária é a simplificação da cobrança de impostos, unindo alguns deles em uma única fonte de arrecadação e tornando todo o processo mais transparente. Porém, considerando que ainda não há uma definição de qual PEC será aprovada ou descartada, nem se a proposta do Governo será, ou não, aceita, ainda é cedo para descrever com precisão quais seriam as vantagens e desvantagens para o país.
Dessa forma, em uma análise ampla de todas as propostas de alteração, as expectativas positivas visam, além do entendimento mais claro das tributações cobradas, o crescimento do número de oportunidades de emprego, considerando que os impostos simplificados fomentarão investimentos em diversos setores. Por outro lado, é importante ressaltar que os resultados da Reforma só serão observados a longo prazo e há a possibilidade de alguns setores, como o já citado industrial, pagarem mais impostos devido ao fim do JCP, afetando o preço final de determinados produtos e serviços. Essa última ressalva se interliga com toda a questão de oferecer boas oportunidades para empresas estrangeiras, já que, com mais uma possibilidade de alta taxação de impostos para elas, as políticas fiscais brasileiras continuariam afastando investimento estrangeiro no território nacional.
Desde 13 de agosto de 2021, o Senado vem realizando sessões de debates sobre as PECs da reforma tributária, visando revisar o conteúdo redigido na proposta do Ministro Paulo Guedes. Levando tudo isso em consideração, é possível afirmar que há um caminho muito longo para a Reforma Tributária ser instaurada no Brasil. Com todos os possíveis pontos a serem adicionados - ou cortados -, é impossível prever exatamente os impactos que ela trará nos próximos meses de 2021, porém, com as especulações até então, é difícil não considerar os prós e contras dessa mudança e o que pesa mais para o universo empresarial.
Glossário
1. Custo Brasil: expressão usada para se referir a um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que atrapalham o crescimento do país e influenciam negativamente o ambiente de negócios.
2. ICMS: o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços incide sobre a circulação de produtos como eletrodomésticos, serviços de comunicação e transporte intermunicipal e interestadual, entre outros. A arrecadação advinda desse tributo é encaminhada para os estados e usada por eles para as diversas funções.
3. ISS: o Imposto Sobre Serviços é um tributo que incide na prestação de serviços realizada por empresas e profissionais autônomos.
4. PIS: o Programa de Integração Social engloba contribuições sociais recolhidas pelas empresas, que são transformadas em benefícios a trabalhadores dos setores privado e público.
5. Cofins: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social é uma contribuição federal brasileira, de natureza tributária, incidente sobre a receita bruta das empresas em geral, destinada a financiar a seguridade social, a qual abrange a previdência social, a saúde e a assistência social.
6. IVA: O imposto sobre valor agregado é um imposto cobrado sobre o fornecimento de bens e serviços.
7. PEC: Proposta de Emenda Constitucional
8. Declaração Simplificada: Na Declaração de Ajuste Anual - Modelo Simplificado, o contribuinte substitui todas as deduções legais da declaração no modelo completo pelo desconto simplificado de 20% dos rendimentos tributáveis, com um limite que varia anualmente, sem a necessidade de comprovação dos desembolsos deduzidos.
9. Restituição do Imposto de Renda: é a devolução do valor pago a mais na declaração do imposto. Ou seja, se você por acaso pagou a menos, tem saldo a pagar; porém, se pagou a mais, tem saldo a ser restituído e pode resgatá-lo.
Bibliografia
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Reforma tributária: quem ganha R$ 4.500 pagaria R$ 1.057 a mais de IR. economia.uol.com.br. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/07/03/reforma-imposto-de-renda-tabela-declaracao-simplificada-irpf.htm>. Acesso em: 9 Aug. 2021.
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